22 abril, 2024

Pétala nº 3814

"Acuso!, protesto!, acuso!
De que me vale?"
(José Régio)


CÃNTICO NEGRO

Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas nossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como a um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pais, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah! que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

JOSÉ RÉGIO (pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira), nasceu em Vila do Conde, em Setembro de 1901. Foi professor, escritor e desenhador. Faleceu em Dezembro de 1969.
Poemas de Deus e do Diabo”, o seu primeiro livro de versos, foi publicado em 1925, era ainda estudante do curso de filologia românica, em Coimbra. A maioria dos poemas do livro foi escrita na adolescência.
No posfácio da edição de 1969 escreveu:
"Um escritor presente à cena literária durante mais de quarenta anos – acha riquíssimas oportunidades de observação no palco, na plateia, nos bastidores. E várias coisas que de momento lhe haviam interessado vivamente – a quase só fumarada e algazarra se lhe reduzem depois. Claro que não tem que se arrepender. Sem a faculdade da ilusão, que movimento e que acções nos seriam possíveis? Só tem que aprender. E até continuar a enganar-se, a iludir-se, a errar, a tactear, se para verdadeiramente continuar a aprender lhe for isso necessário. (…)
Não me arrependo das polémicas em que tenho entrado: umas vezes provocadas por mim, outras desafiado por elas.(…)
Se o polemista não está de todo cego, ou o não é sem remédio, até na polémica pode dizer coisas interessantes, inteligentes ou justas de parte a parte."


(fotos net)

18 comentários:

  1. Bom dia de Paz, querida amiga Teresa!
    "Minha glória é esta:
    Criar desumanidade!"
    Aqui encontro um resumo dos dias atuais...
    Como o mundo anda desumano!
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Beijinhos com carinho fraterno

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  2. Um poema marcante do nosso José Régio.
    Boa semana querida amiga.
    Beijo.

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  3. Olá, amiga Teresa,
    Belo grito de liberdade neste poema de José Régio.
    Excelente partilha aqui nos traz. Ótima escolha!
    Deixo os meus votos de ótima semana, e viva a Liberdade!
    Beijinhos, com carinho e amizade.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltaastuaspalavras.blogspot.com

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  4. É um grande poema que ficará para sempre nas páginas indestrutiveis da nossa literatura.
    Boa semana.
    Um abraço.

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  5. Nunca fico indiferente à leitura do Cântico Negro de José Régio. Diz tudo sobre a nossa liberdade de escolha.
    Tudo de bom, minha Amiga Teresa.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  6. Visitei a sua Casa-Museu em Portalegre há anos.

    Tem poemas de que gosto muito : este é um deles.

    Abraço e bom Dia da Terra!

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  7. Maravilhoso cântico à linberdade! Ótima semana! Linda escolha para a data! beijos, chica

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  8. Amanhã, a propósito do Fórum Macau, recordo o 25 de Abril e aquilo que representou.
    Beijo, boa semana

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  9. Uma bela e muito oportuna pétala!
    Mena
    maiordesessenta.blogspot.pt

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  10. O Cântico Negro de José Régio é um hino à liberdade.
    A força que as palavras do poema exprimem, tocam no mais profundo da alma. Ninguém fica indiferente!
    Excelente Pétala Teresa. Uma boa semana para ti.
    Um beijo.

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  11. Querida Teresa
    Excelente encontrar aqui José Régio com este poema maravilhoso.
    É de ler e voltar a ler, pois sempre encontramos coisas novas, nova luz, novos caminhos. Caminhos que ele queria trilhar porque assim o determinou sem que ninguém lhe dissesse que teria de ir por ali.
    Escolha maravilhosa para este tema da Liberdade que estamos a festejar.
    "Cântico Negro"! As palavras preenchem-nos e coloca o autor nos píncaros da Literatura Portuguesa.
    Boa semana, minha querida.
    Beijinhos
    Olinda

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  12. Olá, querida amiga Teresa, gostei muito desta sua postagem, que me deu a conhecer o poeta José Régio, (pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira).
    Li com atenção seu belo poema, o que foi suficiente para saber que
    se trata de um grande poeta. Uma importante partilha pela qual agradeço.
    Uma ótima semana, amiga Teresa, muita paz e saúde.
    Beijo

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  13. Minha querida “jardineira”,
    Sou um otimista por natureza, mas, não sou tolo. Sinto que apesar de tantas evoluções da humanidade, muitas destas evoluções cresceram como o rabo de uma égua, para baixo. Portanto, LIBERDADE é apenas uma palavra bonita sem que o seu significado seja aplicado à vida da maioria das pessoas, pois, os grandes líderes globais preferem ignorar a sua existência.
    Um beijo e feliz semana!!! 🌹

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  14. Unamos fuerzas, unamos sentimientos y no descansemos hasta lograr esa libertad tan ansiado.
    Lo último que hay que perder es la esperanza.
    Cariños.
    kasioles

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  15. Boa tarde Teresa,
    Um poema muito belo que ficará para sempre gravado na memória de quem o lê ou ouvia, em tempos passados, declamado por João Villaret!
    Beijinhos e bom fim de semana.
    Emília

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  16. Olá, amiga Teresa,
    Passando por aqui, relendo este belíssimo post, que muito gostei, e deixar os meus votos de feliz fim de semana, com muita saúde e paz.
    Beijinhos, com carinho e amizade.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltaastuaspalavras.blogspot.com

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  17. Olá, minha querida, belíssimo poema, esta data é de muita emoção, os que viveram nessa época, escrevem belíssimos poemas, sempre, certas coisas não nos desligamos, aqui é igual, foram anos e anos muito difíceis. Aqui passou muito o 25, muitas homenagens, e os cravos na ponta dos fuzis, quanta emoção ver isso e o povo cantando! Um povo sem liberdade, é um povo sem vida, um país que não está a altura de seu povo.
    Que vivam sempre a recordar essa data, o 25 de abril!
    Beijinhos, pega aí meu coração, amiga querida!

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