"Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões próprias para serem e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou aproveite, essas são as que nunca se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro, teremos esquecido metade do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes."
JOSÉ SARAMAGO, in “O ano da morte de Ricardo Reis” (pág. 59)
(pôr-do-sol fotografado da minha varanda, dia 25.12.2020)