"Gostava de começar com uma citação de René Daumal. “Estou consciente de que não posso pensar. Sou um poeta.” Estas palavras têm alguma ressonância em si?
Ser poeta, como em qualquer vocação, é algo para o qual algumas pessoas parecem ter nascido. É uma missão ou é entendida como uma missão. Para mim, que sempre me relacionei com a poesia, lendo e escrevendo desde criança, sempre foi uma linguagem mística, secreta ou mesmo sagrada. É a este nível que penso na poesia. Afirmar-se poeta é aceitar a responsabilidade de produzir um trabalho inspiracional para os outros; um trabalho que lhes dá as palavras que eles não encontraram por si próprios para as emoções e os sentimentos que têm. Pode-se pensar que é simples ser poeta, mas para mim é um trabalho maior. Nem sempre é lucrativo, e às vezes é difícil de entender, mas é um trabalho sério que tira muito de nós, nos faz tremer, e que exige a nossa consciência. Não se pode dizer “vou deixar de ser poeta”. É-se poeta. É-se guardião do jardim da linguagem sagrada e séria.
"Usa a palavra sagrada. Reza desde criança, e já escreveu que ficou muito feliz quando percebeu que podia compor as suas próprias orações. Pode-se dizer que para si a poesia é uma questão menos racional e mais espiritual?
A arte é sempre uma forma de rezar; ou é uma outra forma de nos expressarmos. Podemos expressar tantas coisas quando rezamos. Não penso que rezar seja uma forma de pedir coisas. Para mim a oração é um espaço de gratidão, porque a única coisa que podemos pedir é a força para enfrentar o que temos de enfrentar. O resto é gratidão. (…)"
PATTI SMITH, cantora, compositora, poeta, pintora, escritora, fotógrafa americana (1946-), excerto da entrevista a Cristina Margato, revista “E”, jornal Expresso de 21 Março 2024
SOMOS TODOS POETAS
Por que não queres os versos que te nascem
Como rebentos pelo tronco acima?
Por que não queres a inesperada rima
Dos sentimentos?
Olha que a vida tem desses momentos
Que se articulam numa cadência
Tão imprevista,
Que é uma conquista
Da consciência
Não ser um túnel de negação…
Brotam as folhas que são precisas
E outras que o não são.
MIGUEL TORGA, poeta português (1907-95), in "Poesia completa", Ed. Dom Quixote, 2000