18 novembro, 2024

Pétala nº 3835


“Há as lembranças, o presente e as nossas vidas anteriores que mudam de cheiro. Quando se muda de vida, muda-se de cheiro.

A infância tem o do alcatrão, de uma câmara de ar e do algodão-doce, do desinfetante das salas de aula, das chaminés das lareiras que exalam o hálito das casas nos dias de frio, do cloro das piscinas municipais, da transpiração agarrada à roupa nas filas dois a dois à saída do ginásio, das pastilhas elásticas na boca, da cola que faz fio nos dedos, das gomas entaladas entre os dentes, de uma árvore de Natal plantada no coração.


A adolescência tem o odor da primeira passa, de um desodorizante almiscarado, de uma fatia de pão com manteiga numa caneca de chocolate quente, do uísque-cola e das caves transformadas em salas de baile, do corpo que deseja, da água de colónia, do gel para o cabelo, do champô de ovo, do batom, de restos de detergente numas calças de ganga.


As vidas posteriores, aquela da écharpe esquecida pelo primeiro desgosto amoroso.


E depois há o verão. O verão pertence a todas as lembranças. É intemporal. É o cheiro que é mais duradouro. Que se agarra às roupas. Que se busca toda a a vida. Os frutos mais doces, a brisa marítima, as bolas de Berlim, o café escuro, o protector solar, o pó de arroz das avós. O verão pertence a todas as idades. Não há infância nem adolescência. O verão é um anjo."

VALÉRIE PERRIN, escritora francesa (1967-), in "TRÊS", Ed. Presença, 2023



(fotos PIXABAY)

Boa semana!

17 novembro, 2024

Pétala sem número

 
Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos; 
É ter dois olhos no mundo
Que veem pelos nossos olhos!

Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!
(...)
Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!

Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!

Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!

FLORBELA ESPANCA, poetisa portuguesa (1894-1930)


Parabéns, pai!
Saudade eterna.

11 novembro, 2024

Pétala nº 3834


“O céu aqui é de um azul impossivelmente penetrante e às vezes canta…”

“Aqui o céu canta durante o dia. É preciso ouvi-lo.”


“… quando o céu canta durante o dia assemelha-se muito mais gregoriano do que a qualquer outra coisa, embora isso não seja exactamente correcto. É uma espécie de ribombar musical, é profundo e ocorre-me sonoro mas também não é bem isso. É reverente à sua maneira ainda que não suplicante, é como se Deus cantasse para si próprio…”


“Quem é que não tem medo da noite? Não sei bem como dizer isto, porém, as noites parecem uma gigantesca semi-escuridão iluminada, à qual nos podemos juntar, da qual podemos fazer parte.”

“Quem é que não se sente desamparado? Não será melhor reconhecê-lo? Não deveríamos substituir as acusações por um reconhecimento mais circunspecto e desgastado pelo mundo. Amamo-nos uns aos outros porque não sabemos amar-nos verdadeiramente a nós mesmos; dependemos uns dos outros porque não sabemos depender de nós próprios.”

MICHAEL CUNNINGHAM, escritor norte-americano (1952-), in “dia”, Ed. Gradiva, 2024


(Fotos: Espanha/Isla Canela, 2024)

04 novembro, 2024

Pétala nº 3833


CARTA À MINHA FILHA

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.
(…)
E o que eu queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
paralelos, espelhos e não janelas.

E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.
(…)

ANA LUÍSA AMARAL, poetisa, tradutora, professora portuguesa (1956-2022), versos do poema "Carta à Minha Filha"


PARABÉNS FILHOTA!
Mil beijos e abraços carregados de Amor. 💚💛



(fotos PIXABAY)